Manifesto 2010 Pt

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Manifesto 2010

 

 

Cinco anos depois da sua fundação,

Três anos depois do despoletar da crise económica mundial,

A Ars Industrialis publica um novo manifesto

 

Manifesto 2010

 

 

1. Em Abril de 2005, quando a Ars Industrialis foi fundada, defendíamos no nosso primeiro Manifestoi que o desvio sistemático do desejo em função dos bens – organizado pelo marketing através das industrias culturais -, e a submissão total da vida do espírito aos imperativos da economia de mercado, que daí resultavam, conduziriam «inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, a uma crise económica mundial sem precedentes» - no decorrer da qual o sistema capitalista presente acabaria por se revelar estruturalmente «autodestrutivo».

Cinco anos mais tarde, a crise planetária despoletada em 2007, através do colapso do sistema subprimes não pára de alastrar as suas consequências calamitosas. Se a securitização e as técnicas financeiras diluindo a responsabilidade foram o catalisador da crise, esta não é contudo, uma crise do capitalismo financeiro que se tornou essencialmente especulativo, ou seja, tóxico - porque sistematicamente brincou ao curto prazo contra o longo prazo. Muito mais ampla, e muito mais grave, é a crise do modelo consumista que, desde o começo do século XX assenta sobre a instrumentalização do desejo (pensado por Edward Bernays que instrumentalizou a teoria do inconsciente desenvolvida por Freud, seu tio) que conduziu inevitavelmente à destruição deste desejo.

 

O que esta crise planetária revela e que marca o fim da mundialização entendida como globalização do modelo consumista, é a destruição do desejo pela sua exploração consumista, conduzindo inevitavelmente à ruína do investimento sob todas as formas – e em particular, sob as formas de investimento económico, político e social que fundam a economia política – havendo uma ligação sistémica entre o comportamento compulsivo do especulador e o comportamento igualmente compulsivo, do consumidor. O desinvestimento é a consequência massiva do curto prazo neoliberal cujos efeitos letais se fazem sentir desde há três anos a esta parte.

Como o comportamento do especulador – que é um capitalista que já não investe -, o comportamento do consumidor tornou-se estruturalmente pulsional. A sua relação com os objectos de consumo é intrinsecamente destrutiva: fundada na descartabilidade, ou seja, no desinvestimento. Este desinvestimento liberta uma pulsão de destruição que tem como consequência – enquanto destruição da fidelidade aos objectos do desejo, a fidelidade que determina a realidade do investimento nos objectos deste desejo – é a generalização da articulação sistémica e destruidora dos comportamentos compulsivos dos consumidores e dos especuladores engendrando uma estupidez sistémica.ii

 

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2. O objecto do comportamento compulsivo que é o objecto de consumo é estruturalmente descartável e deve ser deitado fora para assegurar a continuação dos ciclos típicos de uma economia fundada sobre a inovação, tal como a caracterizou Joseph Schumpeter, como «destruição criadora». A consequência é tal que a mundialização do modelo consumista provocou desperdícios colossais que, como toda a gente sabe se tornou insustentável.

 

Ora, enquanto que este devir desperdício generalizado polui os meios naturais, a descartabilidade do objecto afecta o sujeito: ele próprio se sente descartável. A sociedade consumista, hoje, tornou-se aos olhos de todos, tóxica não apenas para o meio ambiente, mas também para as estruturas mentais e para os aparelhos psíquicos. Pulsional ela torna-se massivamente adictiva – foi por isso que a associação nacional francesa dos profissionais em toxicologia e em adictologia realizaram o seu congresso de 2009 tendo como lema «a sociedade adictiva».

 

Esta é a verdadeira dimensão desta crise, em que os aspectos financeiros são apenas um elemento. Ora, o efeito mais massivo e mais devastador da adicção é aquele em que as vítimas não têm cuidado nem consigo, nem com os outros, nem com o mundo que as rodeia: tornam-se irresponsáveis e alguém com quem não se pode contar. Instala-se, deste modo, uma sociedade da incúriaiii- ou seja, uma destruição da sociedade, aquilo a que nós chamamos uma dissociação.

 

É neste contexto que a questão do cuidado se coloca num novo modo político, não estando apenas confinada ao campo médico ou ético: a questão do cuidado deve voltar ao coração da economia política - e com ela, evidentemente, uma nova política cultural, educativa, científica e industrial capaz de tomar ao seu cuidado o mundo. É por isso, que propomos como um axioma das nossas reflexões e das nossas acções que – tal como o primeiro sentido do verbo economizar diz, e como também cada um de nós sabe no fundo de si mesmo – economizar significa antes de mais e acima de tudo cuidar.

 

 

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3. Durante o decorrer destes cinco anos a Ars Industrialis redefiniu e desenvolveu as suas premissas iniciais. O principal resultado destes trabalhos consistiu em afirmar que o modelo industrial fundado sobre o consumo, que surgiu no início do século XX para contrariar os limites do modelo produtivo do século XIX, e que, no começo do século XXI, levou ao seu limite a produção de externalidades negativas e toda a espécie de toxicidades ( toxic assets, poluição, dissipação dos recursos, destruição da vida do espírito, attention deficit disorder, comportamentos patológicos de todo o tipo, intoxicação dos corpos pelo excesso de consumo, generalização da irresponsabilidade e da falta de civismo, com o desenvolvimento cada vez mais generalizado da mentira e do embusteiv da corrupção, provocando o devir mafioso do capital, aquilo que Keynes já previa desde 1930vetc), este modelo tornou-se obsoleto, e deve dar lugar a um outro modelo industrial.

 

Nós chamamos a este modelo economia da contribuição. Esta caracteriza-se em primeiro lugar pela multiplicidade das formas de externalidades positivas que gera. As externalidades positivas são um cuidado consigo e com os outros quer individual, quer colectivamente. Elas ressaltam igualmente daquilo que, em particular a partir dos trabalhos de Amartya Sen, chamamos potencialidades.

 

A economia da contribuição – que se foi desenvolvendo de há vinte anos para cá a partir de formas que permanecem na maior parte das vezes rudimentares, embrionárias, mas que por vezes são também muito avançadas: por exemplo, a economia de open source, que se tornou o modelo dominante da indústria informática, esta mesma indústria dominando ela própria toda a indústria -, resulta de uma transformação comportamental induzida em grande parte pelo desenvolvimento das redes digitais.

 

Na Internet, é claro para todos que não temos por um lado produtores, e por outro, consumidores, a tecnologia digital abre um espaço reticular de contribuintes, que desenvolvem e partilham os saberes, e que formam aquilo a que chamamos um espaço (milieu) associativo utilizando deste modo, um conceito de Gilbert Simondon. Esta partilha, que reconstituiu os processos de sublimação, e que reconstrói deste modo, uma economia produtora de desejo, de comprometimento e de responsabilidades individuais e colectivas socialmente articuladas segundo as novas formas de sociabilidade, abre um espaço de luta contra a dependência, a des-sublimação, o desprezo de si e dos outros, e de um modo mais global, contra a intoxicação especulativa da adicção.

 

 

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4. Alguém que observe as práticas que proliferam nas redes digitais não pode deixar de ficar tocado quer pela rapidez da disseminação – em particular por aquilo a que chamamos «redes socais» -, quer pelo facto de que se desenvolvem comportamentos hiper-consumistas e adictivos, que se revelam por vezes ainda mais violentos e miméticos do que aqueles que brotaram das indústrias culturais característicos da sociedade de consumo.

 

Nós defendemos que isto acontece pelas seguintes razões:

 

4.1 Como afirmamos no nosso Manifesto de 2005, as tecnologias digitais são as formas contemporâneas daquilo a que os Gregos na Antiguidade chamavam os hypomnémata, quer dizer as mnemotécnicas. Agora, estas mnemotécnicas são também e sempre aquilo a que Platão chamava pharmaka, ou seja, ao mesmo tempo venenos e remédios.

 

4.2 Nós propomos que de um modo geral: 1) toda a técnica é «farmacológica» no sentido de ser potencialmente maléfica ou benéfica; “ 2) faltando a definição de uma «terapêutica», ou daquilo a que os Gregos denominavam uma mélétèet uma épimeleia (disciplina, solicitude, cuidado), que supõe uma técnica de si,visem a qual o pharmakon torna-se necessariamente tóxico.

 

Nós propomos que em consequência disto, uma política – ou seja, nos nossos dias necessariamente também uma economia política – é antes de mais e acima de tudo um sistema de cuidado que consiste em estabelecer os modos de vida (e uma cultura) que sabe como lidar com um dado estado farmacológico (técnica e mnemotécnica). Uma cultura é aquilo que cultiva uma relação de cuidado com os pharmaka que criam um mundo humano, e que também luta contra a sua possível toxicidade.

 

4.3 Durante mais de dois milénios o estabelecimento do saber- viver, que, sob todas as formas constituía os sistemas de cuidado, prescrevia o bom uso dos pharmaka, tendo sido dominado por uma relação privilegiada com a escrita constituindo por isso os pharmakon de referência – quer tenha sido sob a forma de Escrituras [ Écritures], ou como biblioteca das Humanidades, depois da Ciência da República das Letras, ou como imprensa escrita onde uma opinião pública se formava. É na base deste pharmakon alfabético, e da sua extensão com a imprensa (e com a Reforma que decorre fundamentalmente daí), que se estabelece o saber viver típico do Ocidente – cujo modelo se espalha pelo mundo inteiro, em particular com as Missões Jesuítas, preparando espiritualmente a expansão planetária dos mercados industrializados, e com eles, da tecnologia Ocidental.vii

 

4.4. A sociedade de consumo impôs-se desenvolvendo e explorando sistematicamente as indústrias culturais, que constituíam as novas formas de hypomnémata. Estas mnemotécnicas industriais entraram em concorrência com os hypomnématon alfabéticos, e estas indústrias de programas (rádio e televisão) entraram em concorrência com as instituições de programas (escolares e universitários). Resultou daí uma desvalorização da tradição de pensamento que tinha sido a matriz do saber-viver ocidental: a do logos, daquilo a que continuamos a chamar razão, conduzida pelos constrangimentos formais da teoria. A razão viu-se substituída pela racionalização (no sentido de Weber, Adorno, Marcuse e Habermas).

 

Os hypomnémata analógicos e electrónicos, monopolizados pelas estruturas industriais, inacessíveis às práticas individuais, e massivamente submetidos à oposição entre produtores e consumidores, não deram lugar a uma reelaboração das formas do saber-viver. Pelo contrário, serviram para a sua destruição, e a sua substituição através das prescrições do marketing pelas indústrias de programas, enfraquecendo as formas que emergiram na época em que o livro e as suas inumeráveis instituições estruturavam a forma dos saberes – em particular na democracia moderna e pós-revolucionária.

 

4.5. O Hypomnématon digital que apareceu no final do século XX permite ultrapassar este estado de coisas. Mas como todo o hypomnématon, é antes de mais um pharmakon: ele requer invenção, criação e a transmissão de práticas de cuidado que são também elas técnicas de si e dos outros, como lembra Michel Foucault. Ora, o marketing, principal função da economia numa sociedade consumista, logo se apoderou destes hypomnémata, que também são tecnologias relacionaisviii de um poder extremo, e através dos quais as marcas tentam perpetuar e mesmo intensificar e desmultiplicar os modelos comportamentais tóxicos e típicos do consumismo. No momento em que as indústrias culturais que tinham sido os vectores históricos entraram em declínio – a socialização das tecnologias digitais deram-se essencialmente pelo lado venenoso e pulsional deste pharmakon.

 

4.6. A partir da «revolução conservadora» imposta ao mundo inteiro pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos, por Margaret Thatcher e Ronald Reagan, o poder público renunciou não só a intervir na vida económica e industrial como também na regulação da tendência especulativa do capital. Isto significa o fracasso total em assumir aquilo que é o seu papel por excelência, a saber: encorajar o desenvolvimento daquilo, que nas técnicas em geral, e nas mnemotécnicas em particular, conduz ao reforço da sociedade – fazendo do devir técnico um futuro social intensificando os processos de individuação inventando formas de vida, ou seja, um saber-viver -, e deste modo lutar contra os efeitos destruidores, atomizadores e pouco cívicos que todo o pharmakon trás sempre consigo.

 

4.7. Esta renúncia do poder público em exercer a sua função conduziu a uma situação de incúria ao mesmo tempo económica e política de tal modo que, se uma mudança rápida não acontecer, num contexto que às vezes confina com o pânico mundial, conduzirá sem dúvida a catástrofes políticas de violência desconhecida, e à escala planetária.

 

 

O que aqui está em jogo não é o risco de uma crise económica mundial – que já aconteceu – mas de uma catástrofe política-militar-ecológica em que a probabilidade se torna cada dia mais ameaçadora. O poder público, ideologicamente condicionado e enfraquecido pelo dogma neoliberal que postula que o marketing deve substituí-lo, foge das suas responsabilidades e deixa-se instrumentalizar pelos poderes económicos que brotaram no século XX, e que desenvolveram o consumismo, obtendo ainda, enormes lucros com ele, e que lutam ferozmente para que este modelo não mude, ainda que ele se tenha tornado autodestrutivo – eles próprios se autodestroem cegamente.

 

Face a esta incúria que se pode tornar fatal, as forças políticas devem tomar claramente uma posição.

 

 

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5. Hoje, em 2010, a partir dos ensinamentos da crise, mas também a partir de novas práticas que se desenvolveram ainda antes desta crise, e contra aquilo que causou esta crise, é possível reconstruir um projecto político portador de uma nova afirmação do papel do poder público, a saber: fazer do devir técnico um futuro social.

 

Nós defendemos que esta nova política deve colocar no coração da sua acção o apoio a um novo modelo industrial que já está a emergir através de formas nascentes da economia da contribuição.

 

Todavia, estamos conscientes, que o modelo consumista permanece nos nossos dias e mais do que nunca não apenas dominante, mas rigorosamente hegemónico. A hegemonia faz-se sempre acompanhar (ela atinge o seu ponto optium) no momento mesmo em que encontra o seu próprio limite: é no momento em que está mais forte que está mais próxima de se afundar, é pelo excesso na qual repousa que a sua ruína se dá.

 

Contudo, se o colapso já começou, estamos conscientes de que a responsabilidade económica e política consiste, antes de mais, hoje também, em «manter as coisas a rodar», e em «encher os cestos de pão», quer dizer, de uma maneira ou de outra, em prolongar esta hegemonia. Mas nós também sabemos, tal como toda a gente, que este modo de fazer não pode durar sempre: nós sabemos que esta realidade não é sustentável nem no longo prazo, nem mesmo no médio prazo.

 

Em conformidade, nós propomos que hoje, mais do que nunca, uma acção política genuína – não como procura do poder em si mesmo, mas como implementação de um novo saber político e económico, formando uma nova vontade social – que consiste em garantir o curto prazo a fim de alcançar o longo prazo e que reside precisamente não apenas em ultrapassar o curto prazo, mas em alterar os seus traços dominantes.

 

Cada um de nós é afectado por esta contradição de ser ao mesmo tempo e de alguma maneira consumidor, e cidadão consciente de que a modalidade de consumo consumista se tornou tóxica – e contraditória com as mais elementares obrigações de cidadania. Cada um de nós é confrontado com o sentimento de uma nova responsabilidade individual e colectiva, e com a realidade de que o seu próprio comportamento é sempre de alguma maneira irresponsável. Cada um de nós – quaisquer que possam ser as nossas negações ou cegueiras – tornamo-nos mais ou menos um consumidor ao mesmo tempo dependente e infeliz.

 

Cada um de nós, por outro lado, tem necessidade que a economia não só não colapse, mas que se desenvolva – e em particular, os duzentos e cinquenta bebés que, em 2010, nascem a cada minuto, ou seja, trezentos e cinquenta mil por dia, e mais de cem milhões por ano.

 

Nós e os nossos companheiros somos dependentes da economia consumista mesmo quando combatemos contra ela e sofremos dela. Contudo, sabemos que ela não pode continuar porque, como organização de uma inovação fundada na descartabilidade, no desperdício, na incúria e na cegueira, ela está em contradição com o futuro – e ameaça o futuro de cem milhões de bebés que nascem cada ano.

 

Confiando ao marketing a concretização do devir técnico-económico, o neo-liberalismo libertou um poder cego que destrói o futuro e que perigosamente desmoraliza as gerações mais jovens, ao mesmo tempo que as ameaça objectivamente. Isto é o que verdadeiramente está em jogo nesta crise.

 

Porque agora cada um de nós sabe, mais ou menos intuitivamente, que apesar de tudo é possível convencer as populações dos países industriais e projectar, através de um caminho crítico e negociado, debatido, não monopolizado pelos lobbies, e contratualizado numa escala de tempo conciliando os constrangimentos do curto prazo com as perspectivas do longo prazo, uma nova economia industrial fundada sobre o cuidado – em que não se trata simplesmente de adaptar o modelo obsoleto a um consumismo «verde»: trata-se de inventar um novo saber-viver. E isto supõe radicalmente novas políticas, propostas económicas e industriais.

 

A responsabilidade industrial e colectiva, científica e de cidadania, política e económica, consiste em traçar as condições de passagem de um sistema que foi fundado na desaprendizagem, ou seja, na destruição do saber-fazer, na destruição do saber-viver, e agora na destruição sistemática dos saberes teóricos e críticos em si mesmos, isto é um sistema baseado numa estupidez sistémica (é o que significa o caso Madoff) para um sistema fundado sobre o desenvolvimento e a valorização de todos os tipos de capacidades, quer dizer de todas as formas de saber (saber-fazer, saber-viver, saber teorizar).

 

Face às possibilidades inauditas abertas pelo digital o mundo inteiro proclama através de nomes como sociedade de saberes ou economia do conhecimento, o despontar de um tempo novo. Mas o digital, que é um pharmakon, pode aumentar a proletarização generalizada como também lhe pôr termo. Este é o problema político e económico em torno do qual se joga o futuro do mundo – numa época em que o digital, as «redes sociais» como o Facebook, se tornaram a terceira maior agregação mundial de seres humanos com cinco milhões de membros no mês de Julho de 2010.

 

 

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6. Chamamos proletarização ao processo pelo qual um saber individual ou colectivo, estando formalizado por uma técnica, uma máquina ou um aparelho, pode escapar ao indivíduo – que perde deste modo, um saber que era até aí, o seu saber. As primeiras definições da proletarização, que emergem a partir das análises de Smith e de Marx, destacam o empobrecimento devido à perda do saber-fazer dos operários escravizados às máquinas, e não mais senhores das suas ferramentas (artesãos).

 

No século XX, são os consumidores que perdem o seu saber-viver – substituídos pelos aparelhos, tais como o televisor, que «ocupa» as crianças, e pelos serviços, como os canais de televisão, que se «ocupam» destas crianças através dos aparelhos de recepção televisiva, ocupando assim o «tempo disponível do cérebro». Esta perda leva a uma privação do reconhecimento, da sociabilidade, e finalmente da existência, o que gera o sofrimento do consumidor que se tornou infeliz.

 

Mas os trabalhadores intelectuais do capitalismo do domínio cognitivo, em que as funções são cada vez mais confinadas a parâmetros dos sistemas de informação, em relação aos quais não podem modificar os princípios – porque a maior parte das vezes os ignoram – também sofrem uma proletarização das funções cognitivas superiores em que aquilo que se perde constitui a vida do espírito enquanto instância crítica, ou seja racional, capaz de se auto-formalizar teoricamente em vez de se auto-criticar.

 

A declaração de Alan Greenspan perante a Câmara dos Representantes é a este respeito eloquente: ele admitiu que não tinha nenhum conhecimento teórico do funcionamento financeiro daquilo que era suposto administrar – enquanto ao mesmo tempo, neste período Bernard Madoff era o presidente do Nasdaq.

 

O que faz o sucesso do modelo contributivo, que emerge com as redes digitais, ainda que possa permanecer limitado, porque o antigo sistema que tem inúmeros privilégios a defender, faz-lhe uma guerra sem piedade, o que é particularmente verdade do movimento ao mesmo tempo económico, tecnológico, jurídico, político, social e cultural nascido do software de livre acesso, é que ele rompe com esta situação de proletarização generalizada que foi imposta pelo consumismo a todos os agentes sociais, venham eles de onde vierem.

 

Esta ruptura não é uma rejeição das novas possibilidades técnicas, mas o contrário: ela visa socializá-las, quer dizer colocá-las ao serviço da sociedade: não ao serviço de uma «inovação» destruidora fundada sobre a descartabilidade e sobre a regressão social que inevitavelmente daí resulta, mas ao serviço de uma inovação socialix que cultiva aquilo que, na evolução da tecnologia e da ciência, que ela socializa e concretiza, permite cuidar do mundo e do seu futuro.

 

Estes hypomnémata são, como pharmaka, ao mesmo tempo remédios e venenos, isto significa para o nosso tempo que as tecnologias electrónicas, monopolizadas pelos poderes económicos, saídos do século XX como psico-tecnologias ao serviço do controlo comportamental, devem tornar-se em noo-tecnologias, ou seja tecnologias do espírito, ao serviço da desproletarização e da reconstituição do saber-fazer, do saber-viver e dos saberes teóricos.

 

A desproletarização, que é uma reconquista da responsabilidade (aquilo a que Kant chamava a maioridade), deve estar no topo das finalidades políticas e económicas a promover e a realizar nos próximos anos. O carácter exemplar dos combates tidos pelos agentes do software de livre acesso fizerem com que pela, primeira vez, os trabalhadores saídos do mundo industrial inventem uma organização nova do trabalho e da economia que faz da desproletarização o seu princípio e o seu credo.

 

 

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7. Este modelo pode-se generalizar. Ele não diz apenas respeito ao mundo do digital – mesmo se ele precisa sempre da existência de uma infra-estrutura digitalx uma vez que ela reconstitui um local associativo industrial e tecno-geográfico.xi Implementando as tecnologias em que a escala do tempo é a velocidade da luz, constituindo por isso um tempo luz que deve vir substituir o tempo-carbono do século XX (que inclui a produção de energia fotovoltáica), a estrutura reticular desta infra-estrutura não assenta sobre uma organização centralizada que controla e inferioriza uma periferia, mas sobre grelhas de servidores que formam espaços de contribuição onde se reinvente a isonomia e a autonomia que constituem os fundamentos da cidadania grega, e que também participam, na nossa época, e neste novo contexto, da vida económica.

 

O transmissor, a central energética, a central de compra dão lugar aos servidores, aos smart grid (redes inteligentes) e aos agenciamentos cooperativos, contributivos e colaboradores, tais como os AMAP. xiiCom os smart grids, as energias renováveis tornam-se possíveis, este é um caso em que não temos de um lado produtores de energia e de outros consumidores: o smart grid constituiu uma capacidade de produção distributiva, partilhada e plástica. Mas é também a organização cooperativa, colaborativa e contributiva das empresas e nas empresas, e nas relações das empresas com aqueles que se tornam seus contribuintes, e não apenas seus clientes, que está em jogo – segundo modelos cooperativos que permanecem evidentemente por definir e a estimular, mas nos quais a ética (no sentido de Max Weber) é aquela do cuidado entendido como economia política, e que deverá tirar os seus ensinamentos do falhanço do movimento cooperativo promovido outrora por Charles Gide e Marcel Mauss.

 

 

Nesta sociedade reticular, onde toda a espécie de tecnologias relacionais proliferam, a farmacologia das tecnologias do espírito – como tal, têm como objectivo criar a partir das redes digitais novas capacidades de individuação, novos processos de capacitação, para falar ainda numa linguagem inspirada em Senxiii, e ainda porque lutam contra o uso destas redes colocadas ao serviço de um hiper-consumismo que, mais do que nunca, permanece tóxico e adictivo e destruidor da sociabilidade – torna-se uma prioridade das colectividades locais e territoriais.

 

 

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8. A ecologia relacional constitui com efeito o desafio daquilo que se anuncia como o tempo de uma nova territorialidade – se é verdade que as tecnologias relacionais são territorializadas e localizáveis a todos os níveis, acessíveis e implantadas a partir de servidores locais, mas igualmente geo-referenciadas e geo-localizadas através do sistema de localização planetária que difunde a norma GPS através do automóvel, da rádio móvel e dos meta-dados que tornam possível o Google Earth. Esta capacidade de relocalização combina-se com o post-consumismo em que consiste a economia da contribuição para abrir a era daquilo que deve ser entendido como uma pós-mundialização.

 

O fim do consumismo é o fim da mundialização, na medida em que ela consiste essencialmente em interromper e finalmente em des-integrar literalmente os territórios. As tecnologias relacionais e reticulares, desde que sejam objecto de uma política territorial, nacional e internacional apropriada, são pelo contrário tecnologias de re-territorialização. O território é um espaço de externalidades positivas e negativas que estes habitantes conhecem – e que tem dele um saber insubstituível. O território é nessa medida o terreno privilegiado da desproletarização política – de luta contra a proletarização do cidadão transformado unicamente em consumidor, o que sistematicamente reforçou o marketing político fornecedor de produtos eleitorais cada vez mais medíocres.

 

A pós-mundialização não é inteiramente a retirada territorial, mas ao contrário a inscrição do território numa reticularidade planetária, através da qual pode aumentar os seus parceiros a todos os níveis que a compõem, da relação interpessoal tornada possível pela abertura das regiões rurais que puseram em prática uma política da idade digital, à empresa que, implementando localmente e contributivamente a sua competência, sabe criar um espaço relacional des-territorializado; o espaço relacionalmente ecológico é um território de uma hiper-aprendizagem – fazemos referência aqui às análises de Pierre Veltz.xiv

 

 

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9. Uma tal política dos territórios digitais deve, contudo, ser mantida por uma política nacional, e, no caso da Europa, uma política europeia, que deve em particular, estar para além de uma política nacional dos territórios com os territórios – e não colocá-los em concorrência entre si, como o dogma neo-liberal impôs de forma irresponsável – deve ser anunciada através:

 

    1. De uma política científica, tecnológica e industrial que permita colocar com coerência um novo sistema técnico digital, no sentido de um novo modelo industrial e em ruptura deliberada com o existente, mas de uma forma razoável e racional, cortando com o modelo consumista (suportável pelas restrições a curto e a médio prazo da economia) com o modelo industrial obsoleto do capitalismo consumista.xv

    2. Uma política de reconstrução dos sistemas financeiros conforme às necessidades da economia em investimentos, protegidos da especulaçãoxvi, e rompendo com o modelo consumista que não funcione mais através da dívida pública e privada sob o domínio de agentes financeiros transnacionais.xvii

    3. Uma política educativa, escolar, universitária, que tire plenamente partido destas novas formas de hypomnémata ao serviço de um ensino não para proletarizar ainda mais os cidadãos, como podemos ter inúmeras razões para temer com certos projectos digitais no espaço escolar, mas para rearranjar intimamente o saber acumulado através da escrita com estas novas formas de escrita que são os hypomnémata digitais – novas formas de pharmaka e por isso venenos face aos quais os nativos digitais, mas também os seus pais e os seus professores, são hoje em dia e na maior parte do tempo abandonados às mãos de um mercado que se apropria deles sem limites, por falta de uma política pública;

    4. Uma política fiscal nacional, territorial, que favoreça o desenvolvimento de actividades que produzam externalidades positivas em estreita relação com uma política do tempo de trabalho, de novas formas de trabalho e de organização do trabalho, de modo a que este se distinga completamente do emprego.

    5. Uma política de práticas culturais que faça da cultura um investimento social, um elemento primordial da desproletarização e uma estância permanente de “capacitação” dos indivíduosxviii e, através deles, dos próprios territórios - a cultura entendida como capacitação sendo também sempre invenção de novas formas do cuidar, das técnicas do eu e do nós, quer dizer do saber viver.

    6. Uma política sanitária em matéria de toxicidade das psico-tecnologias e da ecologia relacional, que encare a questão das adicções sem drogas, e que deve ser entendida de um ponto de vista farmacológico, no sentido que emergiu de Platão (e não da indústria farmacêutica): no sentido em que por vezes, o veneno é o único remédio desde que a terapêutica esteja assente no cuidar, num sentido muito lato, como cultura e como educação.

    7. Uma nova política dos media, que tire as consequências do seu desvio ruinoso ao serviço de um populismo industrial em si mesmo induzido pelo devir compulsivo do consumismo, e que dá à imprensa e às indústrias de programas, em particular, aquelas que o digital lhes permite evoluir de modo radical – e os obriga -, a um papel funcional e primordial na formação do espaço público, como luta contra a incúria, a destruição da atenção, a proletarização generalizada e a liquidação de toda a forma de responsabilidade.

 

 

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10. Avançaremos com estes temas e iremos ligá-los, tal como já começamos a fazer através de investigações sistematicamente desenvolvidas no decorrer destes cinco anos. Procuraremos fazê-lo, ao mesmo tempo:

 

. desenvolvendo grupos de trabalho sobre o modelo que já está a decorrer em torno das técnicas de si,

. implementando tecnologias contributivas com os nossos membros – o que já começamos a fazer graças à ajuda da Conselho Regional da Ile de France, e com o software Linhas do tempo,

. trabalhando em estreita ligação com os territórios (o que fazemos já na metrópole de Nantes e no Conselho Regional de Nord-Pas-de-Calais e aquilo que temos como projecto para a Região Centro),

. desenvolvendo actividades de investigação, segundo um modelo próximo daquele que a Escola de Frankfurt, tentou concretizar no seu Instituto de Investigação Social, no início do século XX, na Alemanha e nos Estados Unidos.

 

ii Esta estupidez sistémica é produzida pelo fenómeno de proletarização generalizada, quer dizer, por uma perda generalizada dos saberes (substituídos pela informação) que afecta quer os criadores, quer os consumidores e produtores.

 

iii Nesta sociedade da incúria, o modelo industrial obsoleto tenta perdurar, hoje, como indústria da reciclagem que assenta numa negação da realidade. Deste modo, a British Petroleum passa a chamar-se Beyond Petroleum, ainda que a realidade desta actividade industrial, que se mascara sob esta nova política de comunicação, tenha sido desmascarada no Golfo México. A indústria farmacêutica que «trata» através de novas moléculas os problemas da atenção da juventude provocados em grande parte pelas indústrias de programas faz complô com elas na dissimulação das causas económicas e sociais da destruição da atenção – ou seja, da própria sociabilidade. Por todos os lados se instala uma indústria da incúria que «trata» os problemas criados pelas externalidades negativas (psíquicos, económicos, ambientais) que ela própria produziu, e que dissimula através de um bluff de comunicação que hipoteca perigosamente, e por vezes irreversivelmente, o futuro, em relação aos quais os agentes políticos, que só falam do «relançar do consumo», não têm nem a coragem nem a inteligência para resistir. A descrença substituiu-se decididamente ao crescimento.

 

iv cf. Henri Atlan, De la fraude, Le monde de l’ONAA, éditions du Seuil, 2010.

 

v Keynes, Perspectives économiques pour nos petits enfants: «se não tivermos uma alteração cultural que esteja à altura de uma alteração económica…. caminharemos para uma depressão nervosa generalizada».

 

vi cf. os trabalhos do grupo Techniques de soi animado por Cécile Cabantous, Julien Gautier e Alain Giffard em http://arsindustrialis.org/atelier-des-techniques-de-soi [2]

 

vii Esta desenvolveu-se no século XIX com base numa «contingência geográfica alojada no seu solo (o carvão) e a disposição de uma supremacia marítima colonial (importação do algodão americano)» Kenneth Pomeranz, La force de l’empire, Révolution industrielle et écologie, pourquoi l’Angleterre a fait mieux que la Chine, éditions Ere, 2009, p.16.

 

viii As técnicas relacionais às quais as tecnologias relacionais se substituíram são as primeiras na constituição dos indivíduos: elas constituem o coração da individuação psíquica e colectiva. Da política que as acompanha depende o desenvolvimento das potencialidades que elas contêm: quer como veneno, se forem abandonadas aos «bons cuidados» de um marketing irresponsável, quer como remédio se elas forem o objecto de uma política curiosa – no sentido de Bossuet, quer dizer lutando contra a incúria.

 

ix Segundo o conceito proposto por Franck Cormerais, cf http://arsindustrialis.org/pour-une-economie-de-la-contribution-1 [3]

 

x Sobre esta infra-estrutura, sobre os problemas que o digital coloca, ao leitor em particular como actividade mental, sobre a passagem do «tempo do carbono» para o «tempo luz», cf. Pour en finir avec la mécroissance. Quelques réflexions d’Ars Industrialis, Flammarion, 2009.

 

xi Cf. Gilbert Simondon, Du monde d’existence des objects techniques, Aubier, 1969.

 

xii «Um AMAP nasce em geral de um encontro de um grupo de consumidores com um produtor dispostos a entrarem num processo … Em conjunto, definem a diversidade e a quantidade de alimentos a produzir para uma determinada temporada. Estes alimentos podem ser frutos, legumes, ovos, queijo, ou carne …» http://www.reseau-amap.org/amap.php [4]

 

xiii Sen A, L’idée de justice, Flammarion, 2009.

 

xiv Ele escrevia em 1994 que «é necessário deixar de considerar o planeamento do território como um processo de redistribuição, e repensá-lo como um conjunto de políticas que favoreçam a criação de recursos e de riquezas novas. Isto parece banal, mas corresponde a uma revolução coperniciana». Pierre Veltz, Des territoires pour apprendre et innover, Editions de l’Aube, 1994, p.5. «O desenvolvimento económico dos territórios, como o desenvolvimento em geral, passa hoje pela densidade e pela qualidade das malhas entre os agentes». Ibid. p.9 «o principal trunfo dos territórios, o trunfo decisivo será o das capacidades de cooperação intra e extra-regional…» Ibid. p.10.

 

xv É o que está especialmente em jogo, em particular para os territórios, em relação a uma crítica do paradigma actualmente em voga da creative economy, que permanece essencialmente consumista, e que contudo abre às questões de uma economia da contribuição.

 

xvi cf. Paul Jorion, L’impulsion, La finance contre l’économie, éd. Fayard, 2008, p.322.

 

xvii cf. Frédéric Lordon, La crise de trop, reconstruction d’un monde failli, éd. Fayard, 2009, p.90: «acabamos por perder de vista que o sistema bancário privado é gestor de um bem público, a saber a moeda e a segurança dos depósitos».

 

xviii Amartya Sen, L’Economie est une science morale, éd. de la Découverte, 2003, p.64.

 

 

 

 

 

 

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Links:

[1] http://arsindustrialis.org/manifeste2005

[2] http://arsindustrialis.org/atelier-des-techniques-de-soi

[3] http://arsindustrialis.org/pour-une-economie-de-la-contribution-1

[4] http://www.reseau-amap.org/amap.php

 

traduction : Conceiçao Soares